Nas areias e águas democráticas do mar I No Mundo e Nos Livros
Sexta-feira, decorrer da tarde. Verão tropical brasileiro. O sol brilha e
anima a multidão que chega de muitos lugares à procura de bronzeado, pé
na areia e banho de mar. Litoral em algum lugar do Brasil. Praias
imundadas de gente.
“Kibon, restos do que sobrou de um sorvete!” – late um cão pano de chão,
porquanto alguns banhistas evidenciam nos olhos do bicho descouraçado, o
gosto da polpa derretida que mastiga entre as mandíbulas formando a
partir do resto do picolé de abacaxi, uma goma empalhada de palito,
embalagem e saliva salpicada. Depois de alguns breves suspiros, o
animal enfermo transforma em seu intestino a massa amanteigada em fezes
que defeca ali mesmo. Manhã de sábado. A brisa matutina se encarrega de
polvilhar o bolo com granulados de sal.
Duas famílias se reúnem nas areias caiçaras:
“Que tal uma água de coco para hidratar?” – sugere uma banhista da cidade grande.
Passado um instante:
“Refrescante! Agora o que eu faço com isso?”, pergunta a filha adolescente.
“Larga o casco aí mesmo, depois o serviço de limpeza recolhe”.
Bate uma fome.
“Muito bom esse milho na manteiga hein?”, ressalta a veranista do interior.
Após debulhar muitos grãos interroga:
“O que a gente faz com os sabugos?”
“Dá pras
pombas, coitadas. Olha quantas procurando o que comer”, justifica o
condolente marido em causa justa pela manutenção da espécie.
Duas da
tarde. Um grupo de jovens faz vizinhança, desde cedo com as duas
famílias ao lado. O calor é insuportável. As barracas alçadas sobre a
areia; muitas fabricadas num tecido fino de nylon, mais refratam do que
refletem os raios nocivos UVA e UVB. Cinco horas se passa desde que o
grupo composto por três pares de enamorados e uma jovem avulsa
acompanhada de seu cãozinho chihuahua ajeitou-se no disputado espaço por
um lugar ao sol. Nesse período de tempo, após devotarem toda manhã à
pratica de levantamento de copos de cachaça e cerveja, seguidos de
repetidos banhos de mar, enfim, a fome lhes sobrevieram a todos. Então,
mordiscaram pão com carne cozida e desfiada que eles trouxeram de casa,
um frango assado que um dos amigos foi comprar na padaria, também milho
cozido e camarão no espeto, pechinchados no bate boca com os camelôs que
circulavam pelas areias. Saciaram a sede com muitas latas de cervejas e
batidas de frutas servidas por quiosqueiros no local. Mais tarde, ao
retornarem para os banhos nas águas democráticas do mar, diante de um
impasse eles se reuniram num circulo em meio às arrebentações das ondas e
decidiram:
“Ninguém vai saber, depois o que é o nosso mijão nesse marzão?”, legitimou o aparente líder da galera.
Sucedeu-se a isso brincadeiras: pega-pega, disputas de breves e rasos
mergulhos à procura de estrelas, conchas e os famosos caldos em cujo
vencedor é aquele que consegue promover o afogamento do outro, ainda que
por um curto espaço de tempo. Nesse caso o vencido é aquele que engole
um pouquinho das democráticas águas do mar. Nem o bichinho de estimação
da jovem sem namorado escapou da farra. No início Pet estava assustado
com o rebojo bravio das ondas, mas não demorou, logo estava enturmado.
Urinou e saiu da água. Preferiu brincar de pega-pega com as pombas
caiçaras que atemorizadas com a hostilidade do intruso estercavam-se
todas, antes de se dispersarem. Lá pelas tantas da tarde, quando a noiva
de branco surgiu altaneira nos céus em companhia das damas vestidas de
azul cintilante, a galera palmeirim já não se via na praia, todavia do
alto das encostas surgiu num planar compassado o serviço de limpeza,
pronto para a faxina em meio a muita sujeira que se fundia às
areias camufladas de um branco espezinhado. Enquanto o bando de
necrófagos se banqueteava de um robalo putrefato, alguns deles
crocitavam pedindo licença para abicar a carniça; outros já satisfeitos
urinavam e defecavam dejetos sobre as próprias pernas para aliviar o
calor daquele principio de noite abafada. Nem todos os urubus tinham
boa pontaria de modo que inculpes, erravam o alvo e borravam o chão.
Noite de sábado. O hospital central da pequena estância balneária não
consegue dar conta da inundação de combalidos que aportam à recepção.
Uma fila imensa se forma. Todos que estão ali querem ser atendidos com
urgência. Seus rostos estão descorados. Alguns carregam nas mãos
vasilhas improvisadas onde depositam o vômito, outros emporcalham o piso
por onde passam golfando de suas bocas as águas democráticas do
mar. De súbito, à fila de atendimento, de veranistas com os olhos
intumescidos, vertem-se lágrimas incontinentes em toalhas de
banhos, já usadas na praia que improvisam no lugar de lenços. Crianças
acompanhadas dos pais incorporam a fila.
Na recepção, os pais são indagados pela atendente:
“O que está havendo com a criança, mãe?”
“Nossa filhinha está com vários pontinhos vermelhos nas nádegas e também
nas pernas. Ela se coça muito, acho que é alergia de borrachudos”.
Cento e cinqüenta minutos depois, a criança acompanhada da mãe é atendida pelo pediatra que dá o diagnóstico:
“A criança foi infestada pelo bicho geográfico”.
O aborrecimento toma conta de inúmeras famílias que naquela noite
compartilham do sofrimento de seus assemelhados. Domingo. O dia vira
noite. Chuvas torrenciais desabam no litoral. Muitos que no sábado
trocaram o prazer do ócio nas praias para as corridas aflitivas ao
pronto socorro corriam pela manhã às farmácias atrás de soro, pomadas e
antibióticos. O mar revolto invadia a praia com fúria e arrastava para
as calçadas toda imundície produzida pelos palmeirins. Nas estradas, de
volta para o planalto, as palhetas do limpador de pára-brisas dos
carros funcionam de modo alvoroçado. No caos do trânsito das estradas
que convergem para capital e interior(r), carros com os vidros fechados
e embaçados por causa da tempestade, seguem apinhados de tralhas e
gente com comichão de pele, infecções gastrintestinais, conjuntivites...
Vieram e trouxeram a cultura que se difunde através do ditado popular:
‘Pimenta nos olhos dos outros é refresco’.
Por alguns instantes, esqueceram que as areias e as águas democráticas
da praia são elos da natureza. A natureza é sábia e afeita de pronta
resposta:
“Toma de volta o que te pertence”.
Hermes Machado é escritor paulistano que vive na Baixada
Santista. Antes de iniciar a carreira literária atuou como guia para
congressos nos Estados Unidos, foi executivo de empresas e gestor de
negócio próprio. É autor do romance Vitória na XXV, possui contos e
crônicas em sites e jornais impressos no Brasil e exterior.
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