Talhado para o Quarto Poder I No Mundo e Nos Livros
Não faz muito tempo que Jorge ouvira de seu filho, o curioso Jéferson, o
relato que se sucede. Os alunos estavam reunidos no grande cômodo
destinado às aulas do curso de 8ª série do ensino fundamental de uma
escola pública brasileira. Jéferson fazia parte dos que estavam na sala
esperando pela entrada do professor de Ciências que naquele especifico
dia ministraria duas aulas seguidas. Os que estavam na sala não eram
tantos, já que muitos dos colegas de classe, sequer passaram do portão
pra dentro da escola. Apesar de boa parte do grupo de alunos se terem
saído de seus lares com destino à escola carregando apetrechos
desnecessários em suas mochilas para as aulas, ali, diante do portão de
entrada, esvaiu-se a disposição para o aprendizado. Preferiram
permanecer do lado externo do auspicioso casarão de ensino do suposto
saber. Eram conhecidas as justificativas dos alunos rebeldes para a
cabulação freqüente das aulas. Na ocasião Rafael disse em alto brado
ante a roda que se formou na calçada:
“Entrar na sala pra quê? O maluco de Ciências não ensina nada. Nem sei o nome dele. É o quarto professor substituto no ano”.
Gabriel, por sua vez, endossou a insatisfação do colega:
“Ele entra, faz a chamada de presença, cruza os braços e lá fica como
uma ameba estática. A impressão que dá, é que ele está ali pra cumprir
seu horário e cair fora. No final do mês o Estado lhe deposita o salário
em sua conta bancária e nós? Como ficamos?”.
Enquanto isso na sala de aula, de dentro das mochilas, alguns alunos
sacavam câmeras digitais, pequenas filmadoras e micro aparelhos de som
com intuito de partilhar com os colegas suas produções em JPG, MP3, MPEG
e tantos outros formatos que lhe eram peculiares. Outros, sequer
traziam materiais escolares. Em meio à baderna, os poucos alunos que
demonstravam interesse pelo ínfimo que tentavam aprender naquela escola;
isto se confirmava pelas boas notas, estavam impacientes porque o
professor ainda não havia entrado na sala. Passados dez minutos todos
daquela sala foram informados pela inspetora de alunos de que o
professor Abel teria se ausentado por motivos pessoais e por esta razão,
eles deveriam se dirigir ao pátio e lá usufruírem o tempo como eles bem
quisessem. Ao anuncio da inspetora ouviu-se gritos de comemoração e
muita algazarra. Ao chegarem no pátio, os alunos da 8ª série se juntaram
a outras duas classes. Uma classe de 7ª série, cerca de trinta alunos
presentes, teve sua professora de inglês ausentada. Outros 25 alunos de
oitava série passariam cinqüenta longos minutos sem ter o que fazer, já
que o professor de História deixou de vir à escola. No grande salão,
alguns fumavam cigarros. Outros formaram um pequeno círculo para
desfrutar de boca em boca do narguile, um aparato árabe usado para
queimar fumo através de delicada mangueira com longa piteira na ponta. O
tabaco era abafado em essências aromáticas dispostas num vidro em forma
de vaso, do mesmo modo que a vida daqueles jovens. Depois de
aprisionados, o tabaco e as essências eram tragados para os pulmões por
algum tempo. Tempo vital desperdiçado no preparo de jovens para longa
jornada laboral que se avizinha. Diante disso, eram sopradas de modo a
esvair-se no grande território dos esvaecidos. Duas aulas. Cinqüenta
minutos por cada aula. Cem minutos de ociosidade. Tempo esfumaçado.
Apesar de pouca idade, Jéferson ia desenvolvendo seu senso crítico a
partir das observações que fazia, sobretudo quando estava na escola.
Jorge incentivara Jéferson desde muito cedo a observar e refletir sobre
tudo que lhe parecesse estranho a ordem das coisas. Jéferson raciocinava
para o pai:
“Se
vamos pra escola, decerto é para aprendermos alguma coisa. Não é para
perder o precioso tempo que temos ao preparo dos estudos e da cidadania
para aquilo que observo ocorrer dentro da minha escola”. Jorge, o pai,
percebeu que o filho estava bastante insatisfeito com a escola.
Descrente, talvez fosse a melhor palavra que representasse o sentimento
que se alojara em Jéferson.
“Filho, você pode descrever sua insatisfação pra mim? – O pai lhe incentivou a falar”. Jeferson, então, se pôs a relatar:
“Desde o instante que entro na escola com o interesse de aprender, sinto
que as pessoas estão ali porque estão obrigadas a cumprirem seus
papeis. Os alunos e aqui me incluo, não estão interessados em aprender
disciplinas, as quais eles estão convencidos que pouco acrescentará em
suas formações para a vida prática no trabalho. No entanto, sabem que
sem este punhado de entulho disciplinar eles não poderão prosseguir em
seus objetivos específicos. Por outro lado, vejo professores
desorientados no lidar com os anseios da juventude e sem motivações para
ensinar. Muitos entram na sala de aula, fazem o apontamento de presença
de alunos apenas para garantir sua própria presença na sala e com isso,
salvaguardar seu salário”.
Diante do relato do filho, o pai resolveu alertar o filho para a falta
de consciência desses jovens que seguem para escola apenas para cumprir
uma obrigação penosa:
“Não se assuste com o que eu vou lhe dizer filho. Desde a fundação deste
imenso Brasil estabeleceu-se a engenhosa ferramenta política da
funcionalidade, muito comum entre povos e sociedades no mundo onde uma
minoria dominante estabelece as diretrizes para distribuição de rendas
entre as classes sociais, a saber: a massa funcional, ‘o povo’ e a
minoria pensante, ‘a classe dominante’. Por conta do interesse de
governabilidade dessa minoria é sempre imprescindível que a massa seja
funcional. Aí está a razão pela qual até hoje vemos no ensino
educacional, onde tudo começa para a vida dos homens futuros, a
engenhosa ferramenta desmotivadora e formadora de homens preparados
apenas para servir, contudo jamais para criação, já que é manca no seu
bojo a educação que recebem de governos e tem vocação perniciosa
tornando-os trabalhadores limitados”.
Instruído pelo pai, um pequeno comerciante, proprietário de banca de
jornal e revistas, talvez por isso, também um aficionado leitor,
Jéferson dobrou sua carga de horário reservada para educação escolar.
Quando retornava da escola e após algum tempo dedicado ao descanso e
lazer, reservava três horas extras diárias para estudos nas disciplinas
de português, matemática, ciências, geografia e história. Dispunha de um
computador com internet discada e dois cadernos grandes para a
organização das matérias. Sempre à noite antes de dormir, lia algumas
páginas de um livro indicado pelo pai que tinha o hábito à leitura. Seu
pai aconselhava que ler aumentaria sua capacidade de interpretação de
textos e compreensão do mundo. Através dos trabalhos literários vertidos
em crônicas, contos, romances e poesias, aumentava em Jéferson seu
poder de reflexão sobre a vida dos homens e seus anseios. Alguns anos se
passaram e o tempo de vestibular para faculdade chegou. Jéferson
prestou concurso para jornalismo.
Hermes Machado é escritor paulistano que vive na Baixada
Santista. Antes de iniciar a carreira literária atuou como guia para
congressos nos Estados Unidos, foi executivo de empresas e gestor de
negócio próprio. É autor do romance Vitória na XXV, possui contos e
crônicas em sites e jornais impressos no Brasil e exterior.
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