13 abril 2012

Dois pesos e a mesma medida I Hermes Machado

Dois pesos e a mesma medida I No mundo e Nos Livros

Haveria uma chance para Maria? Tendo algum domínio da palavra escrita, sabia assinar  o nome, escrever e-mails, raciocinar e interpretar as quatro operações aritméticas. Também tinha noções de ciências, geografia e história, mas, contudo, tinha planos para uma vida melhor.  Sua condição social escassa não lhe trouxe muitas motivações enquanto jovem. Nessa época, abandonou os estudos logo que completou 16 anos para trabalhar em pequenas oficinas de costura. Forrar o estômago era mais urgente que vincar-se na fonte do saber. A tal oportunidade para Maria significava liberdade e faculdade para o entendimento. Decidida, resolveu que iria estudar. Era hora de recuperar o tempo perdido que cá entre aqueles que gozam de boa sensatez mental sabem que, o tempo que se foi não se traz de volta.  Já com 43 anos, e afastada do ensino escolar a mais de 25, tinha apenas o ginásio ou o que chamam de ensino fundamental hoje em dia. A propósito, não estranhem os zelosos defensores da educação e os caros e esmerados leitores se a fatuidade de um novo nome para metodologia de ensino for sinônimo de deterioração. Ademais, não é sabido que o antigo ensino cientifico, estudado por nossos avós nas escolas públicas era superior ao ensino colegial (2º grau), que por sua vez era superior ao que hoje tratam de ensino médio?  E daí? Alguém objeta?  Maria, não. Trabalhava duro. Não tinha tempo para filosofar. Entrava no batente as sete da matina e se juntava as tantas outras marias que por falta de estudos sujeitavam-se à jornada de 10 horas diárias na fábrica de sandálias de fundo de quintal na periferia da zona dos obreiros na cidade de São Paulo. Num compasso repetitivo seguia os moldes, cortando, colando, martelando, mas sem perder o rumo nos devaneios que ocupavam seu cerne quanto ao futuro, não obstante incerto. Enquanto imaginava as coisas boas que estariam por vir dava forma ao objeto tão cobiçado pelas mulheres operárias de pés descalços no solo fértil do saber.  Assim, distinta das outras marias, ela conciliava as 10 horas de trabalho com os estudos em uma escola pública de ensino supletivo que fazia pela noite. Sonhava grande, por isso empenhou esforços. O resultado veio logo.

Por que um jovem endinheirado que estuda em escolas particulares os referidos  ensinos fundamental e médio prestam vestibulares objetivando as Universidades Públicas Federais, enquanto os filhos da miséria sujeitam-se às populares escolas públicas, algumas de lata, outras de pau, no período mais crítico e de relevante importância que compreende sua formação educacional inicial?
Certificado de Conclusão do Ensino Médio na mão; agora, pensava ela, vestibular o quanto antes e Faculdade de Desenho Industrial. Eram seus objetivos, estava decidido. Estudos redobrados e dois anos mais tarde, lá estava ela prestando a Fuvest, vejam, quanta obstinação.  Seu entusiasmo esfumaçou sua razão. Disputando vagas com jovens formados em escolas particulares tradicionais do estado de São Paulo e até mesmo de outros estados, quais seriam suas possibilidades de ingressar em uma Universidade Federal? Ela bem que tentou. Ao procurar a lista de aprovados em ordem alfabética viu entre nomes e sobrenomes Yoshida, Mohamed, Chong, Abner, Zurita, Chohfi, Matarazzo, Benedetti, Schweitzer, e até um Rousseau.  Não figurava na tal lista, nem seu nome, Maria Aparecida Oliveira, nem tanto quanto  Severino, Silva, Cícero, Sousa e Santos, comuns no Brasil. Não seria sensato dois pesos diferentes resultarem duas medidas? Ficou desapontada. Por que um jovem endinheirado que estuda em escolas particulares os referidos  ensinos fundamental e médio prestam vestibulares objetivando as Universidades Públicas Federais, enquanto os filhos da miséria sujeitam-se às populares escolas públicas, algumas de lata, outras de pau, no período mais crítico e de relevante importância que compreende sua formação educacional inicial? Quantos jovens dessa  classe sócio-econômica minguada ascendem às Universidades Públicas,  já que disputam vagas com jovens previamente preparados em colégios particulares? Quantos desses desassistidos na fase preliminar estudantil  não desistem quando sua  opção se restringe aos altos custos que despenderão nas faculdades particulares que a contar pela idoneidade, poucas se salvam  em face de sua plataforma curricular? Será insanidade sugerir maiores cotas  na Universidade Federal a quem vêm das escolas públicas?  Ao retirar o gabarito das provas, Maria percebeu que seus conhecimentos estavam muito distante  do ideal e bastante parelho da grande massa social de brasileiros. Diante dessa injusta realidade Maria Oliveira desistiu. Mudou de planos.  Resolveu que economizaria moeda por moeda com grande austeridade a fim de, quem sabe, antes dos 50 abriria uma loja de calçados.

Hermes Machado é escritor paulistano que vive na Baixada Santista. Antes de iniciar a carreira literária atuou como guia para congressos nos Estados Unidos, foi executivo de empresas e gestor de negócio próprio. É autor do romance Vitória na XXV, possui contos e crônicas em sites e jornais impressos no Brasil e exterior.


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