23 março 2012

UNITRAFE - Universidade Tradição Feudal | Hermes Machado

UNITRAFE - Universidade Tradição Feudal I No Mundo e nos Livros

Ao chegar diante do portão de entrada, Neneca diminui o passo, respira fundo e mal consegue sustentar-se nas pernas, tamanha é sua ansiedade. Sobe a escada até alcançar o grande saguão da honorável Universidade. Afinal, é seu primeiro dia de aula no curso de graduação de Medicina Veterinária e a ocasião lhe faz, por um instante, voltar no tempo em que com muito afinco se dedicou aos estudos diários para entrar na tão sonhada faculdade. Sente-se arrebatado pela atmosfera de autoridade que passará a exercer naturalmente, ainda graduando, no ambiente social do qual fará parte. Em meio a trigança de alunos um grupo de veteranos intitulando-se Reis da Bixarada: não confunda bixo com bicho, avista-o e desde então, o chama pelo cognome de potra selvagem, dada sua opção sexual afeminado e roupagem à moda boneca caipira. Para intimida-lo, eles cercam-no e fazem uma roda em torno do rapaz a fim de pressiona-lo a participar do churrasco da calourada, em horário e local pré-determinado.
A discriminação preconceituosa, não obstante é cartão de visitas dos veteranos. É certo que a rebeldia de Neneca aflora-se de imediato não aceitando, sequer o velacho que lhe impuseram. Mas sob o risco indelével de acossamento anunciado pelos veteranos aceita o convite à contra-gosto. Chegando no local, uma chácara ladeada por sansão do campo em toda sua extensão, excetuando-se sua entrada que dispunha de único portão feito de madeira náutica, há uma grande concentração de estudantes. A tabuleta na fachada de entrada traz a inscrição: República Senzala. Apesar da zamborrada de camaradas, não é difícil para Neneca discernir quem é ralador e quem serão os ralados. Tanto sua recepção de boas vindas quanto dos demais bixos que chegam para o batismo é regada à mistura de álcool etílico e urina de gato. Pilecados, rodeados pelos felinos masoquistas aliviados da bexiga obstruída, o rebanho de ovelhinhas é sujeitado a rastejar como quadrúpedes ao redor de várias bombonas de 200 litros usadas para acondicionar azeitonas, dispostas em linha de metro em metro. Seus inquisidores usam capuzes dificultando suas identidades. Dando prosseguimento a tradição, os ingressantes são coagidos a mastigar capim, bagaço de cana e bebem leite azedado de porca. Os que se rebelam são açoitados com vara de marmelo. Os que se submetem aos maus-tratos impressionam os expectadores e confirmam mediante o público sua superioridade de resistência e aprovação para os trotistas.
 Os anéis tornam-se mais importantes que os dedos em um mundo fetichista onde o amor entre os homens se esvai e dá vazão para violência banalizada sem limites.“Este é um dos nossos”, diz um sádico veterano, enquanto se diverte trepando por sobre as costas de Neneca, a potra selvagem, agora seu despojo. Neneca, oprimido pela humilhação, resigna-se calado consignando sua dignidade à tradição da barbárie. ‘
“Todo bicho inspira cuidados, não é mesmo camarada”, demanda um veterano. Outro se adianta:
“Já comeram e beberam, estão empanturrados.”
Um terceiro determina:
“Vamos aplicar nossos conhecimentos de veterinária. É hora da tosa e do banho, vamos cuidar do asseio dos nossos bixinhos.”
Estiletes são improvisados. Estropiam-lhes os cabelos.
As garotas cachaçadas e mais submissas aceitam a imposição. Os rapazes, acuados pela facção de intimidadores bem constituída acham graça de tudo que experimentam com o propósito de serem qualificados bons camaradas no final do sarcasmo. Feito a tosquia das madeixas, as ovelhas são encaminhadas uma após outra, cada qual carregada por três ou quatro tiranos até o tambor decepado em sua parte superior, improvisado para o banho e transbordado até a boca pela lama composta de esterco de galináceos. Neneca se desespera. Diz que não vai entrar. Começa a se esbracejar. Berra. É tarde. Deitado, é custodiado por quatro domadores no forrageiro que cobre o terreno da Senzala. Suas mãos e pernas são atadas por cadarços de All Star. Imobilizado, é alçado sobre o tambor pelos canalhas. Inicia-se o ritual de batismo, o banho da pichação. Dois o tomam pelos ombros e os demais pelos calcanhares. Embicado e aprumado acima da tina é mergulhado de cabeça pra baixo e mantido por longos sessenta segundos. Ao içarem-lhe de volta notam seu corpo desfibrado. O cheiro azedume insuportável faz com que os amaldiçoados o larguem debruçado no capinzal.
“Não há pulsação, o que vamos fazer”, adverte uma veterana tolerante com a situação, após usar o dedo polegar levemente pressionado na junção das duas veias radial do pulso de Neneca.
Alguns dentre os trotistas tentam reanima-lo sem êxito. O bando se reúne às pressas e após, dez minutos de acalorada discussão ao redor do corpo inerte, concordam sob juramento, lava-lo, seca-lo, e leva-lo para um hospital. Não há pressa nessa hora. A preocupação com a aparência e as vestimentas de Neneca é prioridade para estes seres coisificados. Os anéis tornam-se mais importantes que os dedos em um mundo fetichista onde o amor entre os homens se esvai e dá vazão para violência banalizada sem limites. Ante o corpo de Neneca, agora asseado, porém sem o fôlego que o mantivera vivo, veteranos e calouros da UNITRAFE, em comum acordo levam-no para a Santa Casa de Misericórdia. Passados um pouco mais que uma década da morte de Neneca e de tantos outros, fica apenas a lembrança de um pai descrente e frustrado, em cujos pilares da crença estavam alicerçados na falsa ilusão de que um estudante de medicina pudesse ser mais educado, portanto mais fraterno, portanto mais humano, portanto, pensava ele, jamais um bixo.


Hermes Machado é escritor paulistano que vive na Baixada Santista. Antes de iniciar a carreira literária atuou como guia para congressos nos Estados Unidos, foi executivo de empresas e gestor de negócio próprio. É autor do romance Vitória na XXV, possui contos e crônicas em sites e jornais impressos no Brasil e exterior.

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